sexta-feira, 28 de agosto de 2009

PE CORREIA DA CUNHA, O NÃO OU O SIM?

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PARÁBOLA DO AMOR DE PAI!




Falar de Padre Correia da Cunha, diga-se em abono da verdade, não é tarefa fácil, mesmo para quem viveu muito da sua vida de adolescente e jovem na afectuosa companhia deste grande e genial mestre.O Padre Correia da Cunha era um homem de personalidade requintada, sóbria e de uma invulgar cultura. Manejava sabiamente e de uma forma extremamente cuidada os instrumentos da escrita.

Quantos trabalhos seus não estarão perdidos ou arquivados sem a justa e merecida divulgação?

Hoje vou dar início à transcrição de um opúsculo da autoria de Padre José Correia da Cunha, com o título de: O NÃO OU O SIM?

Editado no ano de 1960 pela Associação de Marinheiros Católicos, com sede na Rua Augusto Rosa, 31, em Lisboa. O Pe Correia da Cunha de saudosa memória, por mérito e grande paixão à Marinha Portuguesa, atingiu o lugar de  primeiro-tenente, tendo servido várias unidades (irei aproveitar imagens dos vários navios onde exerceu a sua actividade) para ilustrar este seu legado.

O Padre Correia da Cunha, como Capelão da Marinha, foi transmitindo durante longos anos, às sucessivas gerações de jovens marinheiros, as boas práticas cristãs e humanas.

Este grande Capelão da Armada e insigne mestre não se apaga da mente e do coração de todos os que tiveram a felicidade de o conhecer e serem seus discípulos.









Com três letrinhas apenas…


O NÃO OU O SIM?


Qualquer destas palavras se escreve com três letras e se prenuncia numa só emissão de voz.
No entanto, como são diametralmente opostas!...

O HOMEM é na terra o único ser que pode escolher e dizer NÃO ou SIM. E pode dizê-lo com a fala, com o gesto, com as acções, com as atitudes, enfim com toda a sua vida.


Do NÃO ou do SIM, que disser, depende a sua felicidade e a sua paz neste mundo, e a sua eterna salvação no outro.

Para que possas dizer o teu SIM, lê com atenção estas páginas e medita as suas palavras simples, despretensiosas, mas amigas, fraternalmente, cristãmente amigas!...

Do Padre Correia da Cunha


Certo homem…
Certo homem tinha dois filhos. E o mais novo de entre eles disse ao Pai: - Pai, dá-me a parte que me cabe da fortuna. E ele repartiu-lhes os bens.

Alguns dias depois, o filho mais novo, reunindo tudo, ausentou-se para uma região longínqua e por lá esbanjou os seus bens, vivendo dissipada mente.
Tendo ele gasto tudo, houve uma grande fome por aquela região e ele começou a passar privações.

Foi então ligar-se a um dos habitantes daquela região, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos.

Bem desejava ele encher o seu ventre com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Caiu então em si e disse: - ‘’ Quantos jornaleiros de meu pai têm pão com fartura e eu morro aqui à fome! Vou partir para ir ter com meu pai e dizer-lhe: - Pai, pequei contra o Céu e para contigo. Já não sou digno de chamar-me teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros.

Partiu, pois, e foi ter com o pai.

Estando ele ainda longe, viu-o seu Pai, que se encheu de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço.

Disse-lhe o filho: - Pai, pequei contra o Céu e para contigo. Já não sou digno de chamar-me teu filho!

Disse o pai aos seus criados: - Trazei depressa o fato melhor e vesti-lho; ponde-lhe um anel na mão e calçado nos pés. Trazei o vitelo gordo, matai-o; e comam mos em festa, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e encontrou-se!

E começaram a festa.

Embora já conheças esta parábola, não será inútil meditá-la de novo. Não há , de certo, em todas as literaturas do mundo página mais bela nem palavras que melhor exprimam a delicadeza, a misericórdia e o amor de pai, nem ingratidão, a miséria e o arrependimento de um filho.

É costume chamar-se-lhe a Parábola do Filho Pródigo, mas talvez se lhe possa chamar também a Parábola do Amor de Pai, não é verdade?
Repara bem nela. Medita-a no silêncio do teu coração, recolhidamente e a sério…


Texto de Padre Correia da Cunha

Preparem-se para responderem de todo o coração ao questionário, que Padre Correia da Cunha nos irá lançar no próximo post.

Continua…




















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sábado, 22 de agosto de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E A PORNOGRAFIA

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…na sexualidade uma coisa é proibida: AMAR SEM AMOR!




Numa tarde de um belo dia de primavera, quando passava nos largos claustros do mosteiro de São Vicente de Fora, fui interpelado pelo Padre Correia da Cunha, manifestando o desejo de ter uma conversa muito séria e em privado comigo. Como se compreenderá, esta sua solicitação representava para mim uma intimidação.

- Que terei feito eu desta vez? - Pensei eu. Nada me ocorria que pudesse merecer uma forte e eventual reprimenda.

Depois de comodamente instalados na Sala da Direcção da Catequese Paroquial, Pe. Correia da Cunha começou por me perguntar (respondendo ele próprio às perguntas que me formulava):

- Se tu estivesse sozinho em casa e aí ocorresse um incêndio, que terias tu de fazer?

- É óbvio que tentavas apagá-lo!

Mas se não o conseguisses fazer sozinho?

Chamarias os teus vizinhos mais próximos, para te ajudarem nessa difícil tarefa?

- Mas mesmo com ajuda dos vizinhos não conseguiam extinguir o incêndio.

Teriam de ser contactados os bombeiros para anularem esse imenso perigo!

- Será assim ou não?

Sabes, houve aqui na paróquia um grandíssimo incêndio. Não estou interessado em saber se tu estás metido nesse grande fogo. O importante é que o terei de eliminar o mais depressa possível.

Ingenuamente, e manifestando-me muito preocupado, perguntei-lhe onde tinha ocorrido esse tão funesto incêndio?

Abrindo a gaveta da antiquíssima e enorme secretária Pe. Correia da Cunha retirou uma revista pornográfica de muito boa impressão a cores. O incêndio está aqui. Ontem, quando passava no corredor das velhas*, um imenso grupo de jovens contemplava fervorosamente revistas indecorosas, tendo deixado na impetuosa fuga para trás esta que aqui guardo.

Padre Correia da Cunha aproveitou para de imediato e freneticamente fazer uma das suas habituais catequeses:


- Estas revistas são uma blasfémia contra o Espírito Santo. Mas o mais grave é que contribuem para destruir a relação com o verdadeiro Amor desejado e querido por Deus para os seus servos.

Como é possível destruírem-se árvores da nossa amada natureza para imprimir estas obscenidades? A pornografia apela aos interesses sexuais mais degradantes e baixos. Ela toca o lado mais estúpido e negro, revelando no homem o que há de mais perverso. Ela promove e contribui para a degradação do ser humano. A pornografia é uma das forças que escraviza e corrompe a base da sociedade de moral cristã.

Para Padre Correia da Cunha a sexualidade envolvia o que havia de mais belo, sublime e íntimo na vida do ser humano. Deus criou a sexualidade no homem e na mulher para num sincero acto de amor electivo unirem os seus corpos numa dávida de entrega total. Todos nós somos fruto dessa forte enunciação de amor de um homem e uma mulher. Como cristãos deveremos dignificar esse acto como algo de maravilhoso e que não podemos deixar que seja adulterado e violentado com a promoção destas obscenas e degradantes revistas.














Dias depois, na reunião do Conselho Paroquial, Padre Correia da Cunha aproveitava para explicar que tinha ''perdido a cabeça'' colocando em défice as contas indigentes da paróquia, mas não havia alternativa para eliminar o incêndio que se propagava na sua Comunidade. Adquirira junto das melhores editoras todo o equipamento disponível em audiovisual sobre a temática da Sexualidade Humana, visando dar início à formação da juventude da Comunidade Paroquial de São Vicente de Fora. Esta ‘’loucura’’ há altura custou-lhe umas boas centenas de contos.

Todos os sábados à tarde os jovens e adolescentes eram convidados assistir às suas explanações sobre a temática da sexualidade. Acompanhado de excelentes slides Padre Correia da Cunha, com linguagem simples e em agradável cavaqueira, lá ia maravilhando os cerca de cinquenta rapazes e raparigas que ali se encontravam ávidos de conhecerem este deslumbrante mundo da sexualidade humana. Padre Correia da Cunha fazia questão que ninguém saísse daquela sala sem entender a linguagem técnica em que naturalmente se apoiava, pois há época todo este material didáctico era de origem estrangeira. Como sabemos Padre Correia da Cunha não se rogava de utilizar uns palavrões em bom português da gíria de marujo. O importante era que tudo fosse compreendido. Sempre reconheci no Padre Correia da Cunha esta sua enorme preocupação: a mensagem tem de ser entendida e absorvida. No final era dado a todos a possibilidade de colocarem as suas dúvidas para serem esclarecidas, pedindo que colocassem as questões como, quando falam com os amigos destas matérias, não fossem pretensiosos na escolha da terminologia.

A grande lição que aprendi com Padre Correia da Cunha foi que DEUS É AMOR, tudo é permitido só uma coisa é proibida na sexualidade AMAR SEM AMOR. A pornografia era bem o espelho dessa proibição.

Padre Correia da Cunha não era um purista nestas matérias, DEUS criou homem e mulher para serem felizes, vivendo o prazer na entrega dos corpos na maior manifestação do amor… da qual todos nós provimos. Dentro deste princípio, o que cada par faz no âmbito da sua vida íntima só a eles próprios interessa, cabe nos a nós respeitar naturalmente a dignidade do ser humano neste aspecto tão maravilhoso para o desenvolvimento integral.

Foi Deus que criou a sexualidade no homem e na mulher para os unir na busca de desejos íntimos de felicidade plena. Nós próprios somos o produto dessa entrega de amor dos nossos pais. Padre Correia da Cunha bem sabia do que falava, pois nunca ocultava a sua contrariedade na observância da castidade…todos os que o conheceram sabem bem a que me refiro, mas para todos nós eram ainda mais enriquecedoras a sua sábias palavras pelas suas vivências nesta sua faceta tão humana e cristã.


* - O corredor designado das velhas é hoje as instalações do Centro Social e Paroquial de São Vicente de Fora. Na época era um local de arrumos degradado, sem cor e de fraca luminosidade.

Renovo o meu pedido a todos os que possuam documentos, cartas, fotografias que me enviem para podermos dar continuação a esta merecida homenagem a Padre José Correia da Cunha.


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sábado, 15 de agosto de 2009

PE CORREIA DA CUNHA E A DILECTA CATEQUISTA

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‘’Guiada e Transformada pelo Espírito de Deus”



Nos anos sessenta haviam na Paróquia de São Vicente mais de meia centena de catequistas. O ensino da doutrina cristã era para o Padre Correia da Cunha uma prioridade que encarava como uma das principais missões da Igreja.

Havia nesse enorme grupo de jovens catequistas, uma que se destacava pela sua profundíssima Fé em Jesus Cristo, e também pelo enorme sacrifício que colocava nessa sua vocação de evangelizadora, dado ser portadora de uma doença degenerativa geradora de muito padecimento e horrível martírio.

Para si o sofrimento não era injusto. Fazia parte dos planos de Deus que são um grande mistério para todos nós. Considerando que era algo de essencial para a sua santificação, ouvi-a dizer: ‘’Jesus transformou o sofrimento em matéria-prima da nossa salvação. Na cruz Ele dignificou o sofrimento e o tornou fonte de santidade…’’

Ainda bastante jovem ficou paralisada no seu leito e assim impedida de continuar a levar a Boa Nova de Jesus às suas carinhosas crianças, que tanto a adoravam.

Visitei com o Padre Correia da Cunha, na sua missão de visita aos doentes da paróquia, esta nossa extraordinária irmã. O Padre Correia da Cunha sempre lhe ministrava a Sagrada Comunhão.

Hoje quero aqui compartilhar uma história, que tal como muitos dos antigos catequistas da Comunidade Paroquial de São Vicente de Fora, habituais visitadores desta querida e amável educadora da fé, tive o prazer de presenciar.

Depois de dizer logo à entrada com uma voz bem forte vinda do fundo do coração: ‘’A PAZ ESTÁ NESTA CASA ‘’, o  Padre Correia da Cunha fazia a aspersão com a água benta e acrescentava:

-Senhor Jesus Cristo, permiti que este vosso humilde e pecador sacerdote entre nesta casa onde jorra a felicidade duradoura, a prosperidade em Deus e a alegria serena da santidade que aqui habita.








Com a Sagrada Comunhão na mão e após umas breves orações, era chegada a hora de se realizar o encontro íntimo de Jesus Cristo com essa sua atribulada irmã.

Quase sempre, o Padre Correia da Cunha era interrompido pelo forte desejo da jovem doente em intenso sofrimento, mas com uma fortuna irradiante de pedir ao seu prior para que a confessasse. O  Padre Correia da Cunha invertia a posição e rogava-lhe comovida mente que ela o confessasse pelos seus muitos pecados. Eram deixados a sós e creio que depois da confissão de Padre Correia da Cunha à sua Santa Paroquiana vinha de alma renovada.

Era reconhecido por todos que esta nossa irmã buscava no seu sofrimento o meio de se encontrar com Deus, esforçando-se naquele estado de tanto tormento alcançar a sua salvação e a santidade de todos os seres humanos. Todos sabíamos que ela muito orava, implorando especiais bênçãos para sua paróquia e pároco mas nunca esquecendo as suas crianças e catequistas.


O Padre Correia da Cunha sempre lhe recusava a confissão, referindo que os Santos não se confessam; a sua paixão natural de felicidade já a faziam participar na natureza Divina. Esta sua catequista já tinha os benefícios e o refúgio no coração de Jesus Cristo.

O Padre Correia da Cunha conhecia muito bem as virtudes cristãs da sua predilecta catequista e acompanhava de muito de perto todas as sua necessidades, empenhando-se pessoalmente em muitos actos de misericórdia e caridade para com esta simples e humilde família cristã, constituída por si e sua mãe, que depositavam todas as suas confianças e esperanças na fé em Jesus Cristo.

Quando teve conhecimento que a sua catequista havia sido chamada à presença do Pai, o Padre Correia da Cunha chamou ao Cartório Paroquial o Acácio da Natividade da Agência Funerária e rogou-lhe que fosse efectuado um funeral não de supremo luxo, mas que tivesse a dignidade que uma santa merece. Os vencimentos seriam despesas da sua responsabilidade, lembrando-o no final, que as santas gostam de bonitas flores!

Por obra do destino, eu, João Paulo Dias sou fiel depositário da Bíblia Sagrada, edição do ano 1952, que sempre a acompanhou. Guardo-a devota mente. Procedi à sua renovada encarnação em pele com filetes a ouro.

A terminar gostaria de mencionar que alguns dos textos estão sublinhados a lápis de cor vermelha, como salmos, destacando o 16 e 0 27, e unicamente e exclusivamente o evangelho de São João (11-4), que diz: E Jesus ouvindo isto disse: Esta enfermidade não é para morte, mas para a Glória de Deus; para que o Filho de Deus seja glorificado por ela.

Quantas pessoas não estão vivendo assim nos dias de hoje, buscando o sofrimento como um meio de se encontrarem com Deus, esforçando-se em si mesmas para alcançarem a salvação e a santidade?

Muitos ainda certamente guardam este testemunho de vida, desta maravilhosa catequista que tão nobremente e com elevado espírito de sofrimento serviu de uma forma esplendorosa, através da oração, a Comunidade Paroquial de São Vicente de Fora.


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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E COMEMORAÇÃO VICENTINA

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COMEMORAÇÃO

VICENTINA

DOS ‘’AMIGOS DE LISBOA’’



PADRE JOSÉ CORREIA DA CUNHA (1917-1977)

CONFERÊNCIA, NA SEDE, PELO PADRE CORREIA DA CUNHA, NO DIA DO PADROEIRO DA CIDADE DE LISBOA
22 JANEIRO - 1954







Não sei porquê; confesso que não atino bem com as razões que levaram a ilustre Junta Directiva desta Casa a incumbir-me de falar a VV. Exªs do glorioso Padroeiro de Lisboa.


Ao certo, ao certo, não sei. Mas quer-me cá parecer que, se aqui estou na berlinda, é apenas por estes três motivos: por ser alfacinha de gema, por morar no Mosteiro de S. Vicente de Fora, e por ser Padre Capelão da Marinha; que outra razões mais não enxergo…
Pelo contrário, reconheço, sem falsa modéstia, que me falta o saber e me não sobeja nica de tempo para estudar com profundeza o tema, aliás tão interessante, que nos reuniu aqui. Outro qualquer faria melhor.


No entanto, os motivos apontados são de si suficientes para me imporem o dever de aceitar tão honroso encargo. Ou não será dever de todo o alfacinha que se preza, como verdadeiro amigo de Lisboa, conhecer um pouco, ao menos da bela história e das lindas tradições lisboetas? E não cumpre ao hóspede da Claustra Vicentina venerar com público e devoto reconhecimento o Santo seu Anfitrião e Orago?


E que dizer do Padre que não tivesse a mais pequena notícia de uma das maiores figuras Martirológio, para mais Capelão da Marinha que já sulcou as águas do Mar Oceano no mesmo sentido e rumo que seguiu a Nave do invicto Mártir S. Vicente?

E eis porque aqui estou, pondo á prova a paciência de VV.Exªs,!

Prometo, porém, desde já, fazer todo o possível por que tal provação lhes mereça a palma do Martírio nem as honras dos Altares.
E daí…nada se sabe! Verdade seja que a minha fala não pretende ser conferência (ao contrário do que foi anunciado), mas simplesmente palestra, conversa fiada, que eu desejaria fosse cavaqueira amena. Porém, ao fim e ao cabo, VV. Exªas é que dirão de sua justiça!

PORQUE GOSTO DE LISBOA

Nado, baptizado e criado nesta urbe feiticeira, sou Amigo de Lisboa desde que me conheço.
Cedo, bem cedo, me deixei enfeitiçar pelo sortilégio desta cidade.
E, desde então, sempre me habituei a vê-la no mistério da sua dupla personalidade: senhoril no porte, coroada de uma auréola de luz e cor verdadeiramente únicas no mundo, e, ao mesmo tempo, simples e modesta, atavios ou enfeites pretensiosos, nimbada apenas da beleza natural que Deus lhe deu. Dir-se-ia uma Rainha de Sonho que por entre as outras passa, esbelta e cheia de encanto, com a graça de uma varina.

E esta imagem faz-me lembrar aquela velha lenda que, embora conhecida, não resisto á tentação de contar.



Era uma vez…

(E a lenda reporta-nos á velha Idade Média, quando os Senhores Cavaleiros se davam á folgança de torneios e justas em honor de suas Damas por quem suspiravam coitas de amor e a quem ofertavam gestas valorosas).



E foi o caso que, de certa feita, todos os Príncipes do Sacro Império se reuniram em grande e original torneio, não para se determinar qual o mais valente e destro, no manejo das armas, ou mais inspirado e hábil nas cantigas de amor, mas para se decidir qual de entre eles era o mais nobre.

E aconteceu que, num cortejo esplendoroso, montados em cavalos ricamente ajaezados, esses cavaleiros lá foram desfilando pelo vasto terreiro, seguidos do numeroso séquito de seus vassalos. Faziam alarde vaidoso de suas riquezas e troféus e ostentavam com orgulho os pergaminhos da sua linhagem. Até que chegou o momento de se apresentar um cavaleiro ainda novo, príncipe também de sangue e de alma, embora pobre, que não levava luxos nem grandezas, mas se fizera acompanhar por todos os seus leais súbditos. Chegado que foi ao centro do terreiro, acenou á multidão para que se calasse um pouco.
E mal se fez silêncio, disse:


- ‘’ Senhores! De todos é sabido que eu pouco tenho ou nada; mas considero-me o mais rico e nobre dos Príncipes da Cristandade, por ter um Paço em cada casa dos meus vassalos e em cada peito deles, um coração amigo! ‘‘


E reza a lenda que todos o aclamaram vencedor.

Pois quer-me parecer que a história, com pequenas alterações, se pode aplicar a um imaginário torneio entre as cidades do mundo. E estou certo de quem, depois de terem passado as grandes capitais vaidosas de suas grandezas, quando chegasse Lisboa, na sua Nau Catrineta, sorrindo como Ela sabe,


Toda a gente com certeza,
Desde os Chins as Esquimós,
Diria a uma só voz:
- Tu és do mundo a Princesa!


De resto, deixem dizer-lhes muito aqui á puridade (não venham acusar-me de plagiário…), esta ideia não é nova; já foi cantada em oitava rima pelo nosso Épico:


E tu, nobre Lisboa, que no Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo nome foi Dardânia, acesa,
Tu, a quem obedece o Mar profundo…

(C. III – E. 57)


Mas, se, nem no tempo de Camões, tal cortejo se realizou, bem será que se não faça nunca, para que apareça por aí, através da imprensa, da rádio ou da televisão, a infausta notícia de que a nossa Lisboa vai partir para Hollywood, contratada por algum magnate do cinema…

Pois (como ia dizendo), eu gosto de Lisboa; sou deveras seu Amigo.
Quantas vezes me não pondo a olhar para Ela e, absorto, a não contemplo, dali, do morro de Almada! Como se mostra bela e formosa, quando, pela tardinha, toda inundada d sol, se revê embevecida nas águas especulares do seu Tejo!

Que maravilha!

Quem ainda a não viu dali, defronte, não conhece bem a sua beleza, e não sabe o que perde…


O rio, antes de se fazer ao mar, por despedida, atira-lhe furtivos beijos (não vá o Sol ter ciúmes) e oferta-lhe, como presente para o enxoval, alvas rendas de bilros que as suas Tágides tecem ao som da melopeia múrmura das ondas. E Ela, que lhe percebe o gesto, mostra-se ao Sol sorridente e mimalha (para que Ele não fique amuado), e desce á pressa dos seus paços do Castelo, embrenha-se no labirinto de Alfama, benze-se á porta da Sé, encomenda-se a Santo António e vai, num pulo, ao Terreiro do Paço estender-lhe os braços gentis. Depois, tiquetaque pela calçada, sobe a Santa Catarina para o ver mais a preceito e lhe dizer: ‘’ Aqui estou. Eu não te deixo !’’

E com o Rio tem de andar, também Ela acompanha, sempre correndo ligeira, quanto as forças lho permitem, até quase sair da barra. E vendo que mais não pode, na Torre de S.Vicente, ali adiante a Belém, se fica triste e saudosa, de lenço branco na mão, acenando, acenando…até ao pôr-do-sol.

Depois volta, ao lusco –fusco, ainda mais bela e formosa, porque a luz do seu olhar tem um véu feito de pranto; e fica por momentos a rezar á Senhora de Belém pelo seu noivo marinheiro – o Tejo.



COMO EU GOSTO DE LISBOA!

Quanta vez, entrando a barra, eu não senti a graça do seu perfil, o calor do seu olhar, o encantamento da sua luz, a sedução da sua voz! É que Lisboa tem perfil de sereia, uma luz diáfana e quente uma voz fresca de rapariga.


Ainda há pouco, vindo de Nova Iorque, cidade do barulho e da enormidade, onde tudo nos esmaga e nos arranha (pois se até arranha-céus…), eu senti a deliciosa fascinação da nossa Lisboa.

Não será bonito, mas manda a verdade que se diga. A mim vieram-me as lágrimas aos olhos, quando ás oito da manhã (Ela acordara cedo para nos saudar), Lisboa me sorriu e disse: - ‘’ Bem-vindo sejas, Amigo! ‘’… e a luz do seu olhar beijou meus olhos.

Não se julgue, porém, que isto se deu só comigo. Não! Todos os camaradas do Aviso Gonçalves Zarco viveram a mesma alegria. Se o não dizem, é só por acanhamentos…


Como eu gosto de Lisboa!


Quanta vez, fazendo a ronda dos bairros, eu não sinto mais orgulho dos meus pergaminhos de Lisboeta!
Gosto tanto de a ver de perto…
Airosa Menina e Moça, é sempre gentil e formosa, quer calce as tamanquinhas e, de canastra à cabeça, vá da Ribeira á Madragoa apregoando – ‘’ Viva da Costa’’ – quer se fique horas perdidas junto ás portas da Rua da Regueira ou do Largo da Adiça, como senhora comadre, contando histórias da carochinha.


É sempre bela Lisboa!


No Bairro Alto é fadista; em S. Vicente, fidalga; na velha Alfama é marinheira; na Graça e Arroios é garrida; em Alcântara e Xabregas, operária, no Castelo é Princesinha; na Madragoa, varina; nas Avenidas, donzela, na Estrela, Senhora-Dona; e, quando fora
de portas, tem rebitesas saloias.

Em toda a parte sorri; em todas as ruas canta; em todo o lado moureja (jeito que lhe ficou de pequena). E, quando, pela tardinha, desce o Chiado catita, Lisboa é ‘’Flor d’Altura’’ – ‘’vai formosa e não segura! …’’.

Se a figurinha delicada e airosa de Lisboa assim nos cativa, qual não será o nosso encantamento perante a beleza das suas lendas, tradições e história, dessas três irmãs Siamesas que tecem com todo o enlevo o manto auri fulgente desta Rainha de ontem, de hoje e de sempre?

Como eu gosto de Lisboa, da sua história, das suas tradições, das suas lendas, da sua alma, enfim, sobre a qual pairou sempre e paira ainda a bênção do Senhor!

Ou não será expressão da verdade a poesia do nosso saudoso Irmão, Noberto de Araújo, que nós trauteámos com altivo entusiasmo:

Lisboa nasceu,
Pertinho do Céu,
Toda embalada na Fé.
Lavou-se no Rio
- Ai, ai , ai Menina,
Foi baptizada na Sé!



É verdade, é sim, Senhores! Lisboa é obra da graça de Deus!

Em cada página da sua multissecular biografia, como em Livro de Horas, há iluminuras cristãs, registos de santos, perfis de torres e de igrejas, imagens de devoção e altares de ex-votos. Sempre e a cada passo se encontra o Crisma do Sinal da Cruz e em cada pedra a sigla do Cristianismo.

A Fé Cristã de Lisboa a manifestar-se através dos tempos, nas igrejas, nas procissões, nas devoções populares e nas solenidades litúrgicas, que belo tema para ser desenvolvido!...

Foi essa vida de Fé que a fez grande.

Há anos, falsos amigos quiseram tirar-lhe esse espírito cristão.
Mas, graças a Deus, se conseguiram dar-lhe os ares de Virgem Louca, não conseguiram, por mais que o intentassem, apagar-lhe a lâmpada da Fé que recebera no Baptismo.

Mas não falemos em coisas tristes.

E perdoem-me VV. Exªas. Se me demorei muito a falar-lhes do meu embevecimento perante esta cidade de magia. Decerto, terão razão para dizer, com Virgílio: ‘’Jam satis prata biberunt ‘’ E passemos adiante, pois V.V.Exas querem ouvir falar do Santo Padroeiro da Cidade, cujo é o festivo dia de hoje.



SÃO VICENTE - FACHADA IGREJA SÃO VICENTE FORA



SÃO VICENTE E AS TRADIÇÕES LISBOETAS



A Lisboa nada falta, nem sequer aquela aura misteriosa de ter sido princesa mourisca, conquistada à Fé Cristã por valente e pundonoroso cavaleiro.

Quando D. Afonso Henriques tomou a à sua conta esta Menina e Moça (e não foi lá com duas cantigas: que os tiranos, que a dominavam, a não queriam largar por nada, e muito menos à mão de Deus Padre…), mas enfim, quando ele conseguiu tê-la a são e salvo, pensou logo baptizá-la para a fazer cristã, e (claro está) arranjou-lhe padrinhos, pois quem não tem padrinhos morre mouro.

E assim foi.

Depois de tomar posse da cidade, a 25 de Outubro de 1147 (como rezam as Crónicas e o comprova o profundo estudo do Sr. Dr. Augusto de Oliveira) e depois de pôr tudo em ordem, o grande Rei tratou de levar Lisboa à Pia Baptismal.

No dia 1º de Novembro desse mesmo ano, organizou-se luzidia procissão do Castelo até á Mesquita Maior, para transformar esse templo de Mafoma em Igreja de Cristo, et ipso factu, baptizar a Princesinha.

E tanto que Lisboa se tomou (escreve Duarte Nunes de Lião na sua crónica dos Reis de Portugal) El-Rei com todos as cristãos, com solene e devota procissão, foi à Mesquita Maior, que ora é a Sé: e depois de mundificada dos sacrifícios que nela se faziam a Mafamede, os bispos e sacerdotes revestidos entraram nela cantando o cântico TE DEUM LAUDAMUS. E depois de consagrada e dedicada à Virgem Santa Maria Nossa Senhora, se celebraram nela os ofícios divinos e se disse Missa solene, e se nomeou por SÉ CATEDRAL…

António Coelho Gasco, na Primeira Parte das antiguidades da Muy Nobre Cidade de Lisboa, descreve com mais pormenores ainda esta solene procissão. E todos os cronistas e historiadores, que se ocuparam do assunto, concordam com a descrição do cronista citado e a confirmam (1).


(1) – Conf. Nicolau de Oliveira, in Grandezas de Lisboa: Damião de Góis, dês



A quem tenha mais tempo e paciência deixo o cuidado de procurar documentação decisiva sobre esta tese. Creio, porém, poder afirmar-se com toda a segurança que, pelo menos, na Capela de S. Vicente da Sé Patriarcal de Lisboa, o invicto Padroeiro da Capital era celebrado neste Rito Romano-Visigótico ou Mosarábico.


Embora ainda não tenha visto escrito algum em defesa desta tese, devo declarar que já em tempos o incansável Apóstolo da Liturgia em Portugal, Mons. Dr. Pereira dos Reis, em conversa interessantíssima sobre o assunto me revelou que tal devia ser o culto de S. Vicente. Pena é que S. Exa escreva tão poucas vezes, pois decerto a sua erudição resolveria todas as dúvidas. Espero, porém que ainda venha a público dizer de sua justiça. Entretanto, e para despertar o interesse de pessoas mais autorizadas e competentes, aqui deixo formuladas as razões que me dão a certeza não só da existência daquele Rito em Portugal, mas da sua prática em Lisboa, em honra de S.Vicente:

I – Já ficou dito, e está confirmado pelo Mestre Júlio de Castilho, que a tradição da vinda das relíquias de S. Vicente para Lisboa não é destituída de valor Histórico. Ora, segundo tal tradição, quem informou Afonso Henriques da existência do corpo do Santo foram os Mosárabes, cristãos que viviam na Lisboa mourisca.


Decerto, que eles já celebravam o grande Mártir no Rito que tinham, tanto mais que, durante a dominação sarracena, por razões óbvias, eles não podiam adoptar outro.



II – Que o Rito Romano-Visigótico existiu em Portugal, é facto indiscutível. Há documentos insofismáveis. Um deles foi descoberto, há anos, pelo sábio investigador coimbrão, D. António Garcia Ribeiro de Vasconcellos, na cidade da Rainha Santa. Este documento, que vem citado e fotografado no Livro El Canto Mozárabe, de Cassiano Rojo e Germán Prado (Barcelona, 1929), pode servir como prova de que, em Coimbra, existiu também aquele Rito. E se nos lembrarmos de que o Convento de Santa Cruz era dos mesmos Cónegos Regrantes a quem estava confiado o de S.Vicente de Fora; se recordarmos que aqueles monges exerceram uma influência importantíssima na vida religiosa e cultural dos nossos primeiros reinados, talvez possamos concluir que o Santo Patrono do mosteiro lisboeta fosse louvado também em Coimbra com o Rito Romano-Visigótico.

III – Outra razão, não menos interessante, é a que nos oferece a feliz coincidência de, no Ofício do Santo, tanto no Patriarcado como na Diocese de Faro, se cantarem ainda hoje algumas estrofes do célebre hino de Prudêncio, adoptado também, desde o século V, no ofício do Rito Romano-Visigótico.


IV – Também ouvi dizer não sei a quem (garanto, porém, que não o sonhei nem inventei) que, antes das obras levadas a cabo por Baltasar de Castro, havia na capela vicentina da Sé Patriarcal uma roldana de campainhas cuja utilidade ninguém conhecia.
Ora no Rito Mosarábico usa-se um carrilhão em forma de roldana para tocar continuamente durante o Cânon da Missa. Não será, portanto de concluir-se que o orago da referida capela era celebrado naquele Rito?


V – Uma achega mais me forneceu a preciosa informação de D. Gabriel de Sousa, Reverendíssimo Padre-Abade de Singeverga. Disse-me há pouco, Sua Paternidade, em amena conversa sobre este assunto, que o Reverendo Pároco da Freguesia de S.Vicente da Chã, concelho de Montalegre, também não sabia o que fazer a uma roldana de campainhas que havia lá na igreja.

Não será esta roldana mais uma prova preciosa de que o culto de S.Vicente foi durante muito tempo o masarábico?


É, pelo menos, sintoma muito interessante a existência de uma roldana numa igreja perdida em Trás-os-Montes, cujo orago é o grande Diácono.


VI – As razões apontadas podem não ser concludentes, mas julgo que não ficarão dúvidas algumas perante os documentos que a devoção a S.Vicente e a solicitude por quanto lhe diz respeito levaram o Sr. Dr. Adriano de Gusmão a oferecer-me. Não posso deixar de lhe agradecer aqui publicamente o espírito de colaboração com que deles me deu notícia e a amizade com que se deu ao trabalho de mos trazer.

Bem-haja!


E aqui têm VV. Exas. esses dois preciosos documentos, que rezam assim, textualmente:


«Havia a Capella chamada a Missa de S. Vicente, que quotidianamente celebrarão os Bacharéis por alternativa no Altar, onde estava o seu corpo, com o privilégio de ser a própria do Santo em qualquer dia, ou festividade do anno sem excepção alguma. Constava esta Missa de algumas orações, que não há nas outras missas: era de um só Padre; porém cantada a canto chão pelos meninos do coro, tocando-se em todo o tempo do Canon huma roda de campainhas, que estava na claustra por detrás da Capella do Santo, e se observava indispensavelmente. No seu oitavário era a Missa dos três Padres, cantada a canto de órgão pelos mesmos meninos do coro; e tudo se fazia por uso antiquíssimo»


J.Baptista de Castro, Mappa de Portugal, III TOMO, pag. 347, 2ª edição 1762.

«Nesta SÉ se canta, todos os dias do anno huma missa em o seu Altar do Glorioso Mártir S. Vicente, officiada pedosmoços do choro a hora matinas, com diffferente Rito do Romano…»

«Memorias para a História Eclesiástica de Portugal – Que sítios , ou perguntas sobre os monumentos históricos da Se de Lisboa»


(È anterior ao terramoto)


Em face do que fica exposto, não será, pois, ousio meu afirmar que em Portugal, ou pelo menos na Capela Vicentina da Sé de Lisboa, até ao terramoto de 1755, S.Vicente era honrado na Liturgia Romano-Visigótica.

E sendo assim, creio não haver grandes dificuldades em restaurar esse culto pelo menos, na referida Capela. Seria reatar uma devoção tradicional ao nosso Padroeiro e, ao mesmo tempo, restaurar um privilégio honroso para a nossa cidade.

Outra questão, também de certo interessante, que surgiu no meu espírito, durante os estudos a que procedi para este pobre trabalho, seria determinar qual a razão por que D. Afonso Henriques confiou o Mosteiro de S. Vicente de Fora aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. É que talvez não fosse de todo alheia a tal decisão a devoção ao Santo Diácono…

Estas coisas são como as cerejas: vêm umas atrás das outras. E o que é certo é que vim a reparar nisto: - Adão de S. Victor, o inspirado poeta das sequências vicentinas, falecido em 1173, era também Cónego Regrante na Abadia de S. Victor de Paris.

Nada me custa crer que o nosso primeiro Rei, tão ligado aos franceses por laços de sangue, pelos elos da amizade com S. Bernardo e outros, e ainda pela valiosa ajuda dos Cruzados, tenha confiado o Mosteiro que ele dedicou a S. Vicente à Ordem Religiosa a que pertencia aquele poeta do Santo. É até muito provável que os Cruzados também fossem devotos do Santo e cantassem as tais sequências tanto em voga naquela época.

Se assim fosse (e nihil obstat), ficaria satisfeita uma das muitas curiosidades do espírito bisbilhoteiro dos historiadores…

Mas voltemos ao culto de S. Vicente. E agora especialmente em Lisboa.

Padrinho da cidade desde o seu Baptismo, o Santo Diácono foi celebrado com todas as honras litúrgicas, como era natural.
O seu dia natalício era, na Sé de Lisboa, precedido de uma vigília com missa apropriada, cujo texto, afora as orações que eram exclusivas, eram os da vigília de S. Lourenço, um dos Santos de maior devoção da Igreja primitiva. Está registada em missais antigos.

Propriamente no dia da festa (22 de Janeiro), em S. Vicente de Fora, onde o santo era considerado Cónego Regrante, e na Sé em que fazia parte do Cabido, a Celebração do Padroeiro era e é ainda hoje duplex de 1ª classe com oitava privilegiada, rezando-se ofício próprio e tal MISSA LAETÁBITUR.

No dia da oitava, 29 de Janeiro, realizava-se na Sé, certamente promovida pelo Cabido, grandiosa e solene procissão com as relíquias de S.Vicente.

Foi encontrar num in-fólio da nossa Catedral a notícia desta procissão, cuja tradição infelizmente se perdeu:


Reza assim o texto:


DIE XXIX JANUARI

PROCESSIO S. VINCENTII MARTYRIS


COMMEMORATIONES

DE EODEM SANCTO

ANTIPHONA


Oscae Vincentium genuit,

Caesar Augusta stola exornavit,
Valentia martyrio coronavit,
LISBONNA, sepultura decoravit.

Justus ut palma florebit.

Sicut cedrus Libani multiplicabitur.


A festa da trasladação em 16 de Setembro, embora não tivesse tanta solenidade exterior, era e é ainda celebrada como duplex maior com missa própria, isto é, composta de textos apropriados á celebração do acontecimento, textos esses que, com excepção apenas do Cântico do Intróito e do trecho do Evangelho, são todos diferentes dos da festa de Janeiro. Isto segundo o próprio de um missal que possuo, editado na tipografia Plantiniana em 1716.

Finalmente, em Lisboa, a devoção ao Santo Padroeiro foi tão grande que o seu dia foi guardado como dia SANTO.



Pena é que a devoção a S.Vicente, Padrinho da Cidade e seu tão desvelado Protector, tenha decaído tanto nos últimos tempos.



A INGRATIDÃO NÃO FICA BEM A NINGUÉM E MUITO MENOS A LISBOA QUE DESDE TENRA IDADE, FOI ANIMADA E PROTEGIDA POR TÃO GRANDE HERÓI DA FÉ CRISTÃ.







http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Olisipo/1954/N66/N66_master/Olisipo_N66_Abr1954.PDF













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domingo, 9 de agosto de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA, MOÇARÁBICO


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Mio sidi ibrâhim yá tú uemme dolge fente mib




Padre Correia da Cunha era um grande estudioso dos ritos litúrgicos mas creio que tinha um imenso fascínio pelo Rito moçarábico; pelos muitos livros, missais e registos de cântico (…) que possuía deste cerimonial. Presumo que ainda hoje se celebra este rito nas Catedrais de Toledo e Granada, em Espanha. Padre Correia da Cunha visitava com alguma assiduidade essas regiões do país vizinho, onde mantinha contactos com especialistas na área da liturgia e irmandades defensoras deste antiquíssimo Rito.

Ficaram celebres os moçárabes do andaluz, que tiveram uma cultura própria, meio latina meio árabe. O moçarabismo andaluz teve um centro importante em Toledo, onde muitos dos seus vestígios ainda se conservam.

Designa-se por rito moçárabe o ritual litúrgico originariamente criado e praticado pelos primeiros cristãos ibéricos, ainda sob domínio Romano. Sofreu importantes alterações durante o período Visigótico; mais tarde os cristãos moçárabes continuaram a praticar o rito mesmo sob o domínio árabe da Península Ibérica.

Em muitas conversas que tive com Padre Correia da Cunha sobre ritos litúrgicos, lembro de ele expressar a necessidade, utilidade, para que a Igreja celebrasse os seus rituais com base nas expressões mais piedosas da cultura de cada povo; no caso português o fado e o folclore.
Deste modo poderia unir às celebrações, mais cristãos e não faltariam guitarras e eruditos para se dedicarem à missão. O povo não deve ser afastado da sua cultura nas suas cerimónias litúrgicas, para não ser privado daquilo lhe enche a alma e lhe dá alegria.


Como compreenderão Pe. Correia da Cunha, não advogava a abolição do rito latino, mas em alguns locais e em algumas ocasiões especiais da vida da paróquia, a liturgia deveria ser celebrada segundo o rito próprio da cultura popular.

Uma música simples ajudava a promover a oração ao elevar a alma dos filhos de Deus e a evidenciar a bondade de Deus.
Para terminar estas conversas fraternas, Padre Correia da Cunha sempre colocava um disco de vinil da sua colecção, com a gravação de uma das missas celebradas no Rito Moçarábico com cântico flamenco.

Termino hoje com a publicação desta VIII parte, a magnífica Conferência proferida pelo Rev. Padre José Correia da Cunha, no ano de 1954, na Sede dos Amigos de Lisboa. Penso que pudemos testemunhar através destes admiráveis textos a sua imensa e intensa paixão a Lisboa, cidade que o viu nascer, a profunda veneração que possuía a São Vicente patrono da sua amada paróquia e a grande dedicação e sedução que dedicava aos estudos da Liturgia. Foram estes uns dos seus enamoramentos que tão sabiamente nos soube transmitir e que temos o imperativo de comunicar às novas gerações de Jovens, que infelizmente não tiveram a oportunidade de contactar com este fascinante homem de cultura, que foi Padre José Correia da Cunha.











COMEMORAÇÃO VICENTINA DOS ’AMIGOS DE LISBOA’’






Conferência, na sede, pelo PADRE CORREIA DA CUNHA, no dia do Padroeiro da Cidade em 1954






VIII PARTE





Embora ainda não tenha visto escrito algum em defesa desta tese, devo declarar que já em tempos o incansável Apóstolo da Liturgia em Portugal, Mons. Dr. Pereira dos Reis, em conversa interessantíssima sobre o assunto me revelou que tal devia ser o culto de S. Vicente. Pena é que S. Exa escreva tão poucas vezes, pois decerto a sua erudição resolveria todas as dúvidas. Espero, porém que ainda venha a público dizer de sua justiça. Entretanto, e para despertar o interesse de pessoas mais autorizadas e competentes, aqui deixo formuladas as razões que me dão a certeza não só da existência daquele Rito em Portugal, mas da sua prática em Lisboa, em honra de S.Vicente:

I – Já ficou dito, e está confirmado pelo Mestre Júlio de Castilho, que a tradição da vinda das relíquias de S. Vicente para Lisboa não é destituída de valor Histórico. Ora, segundo tal tradição, quem informou Afonso Henriques da existência do corpo do Santo foram os Mosárabes, cristãos que viviam na Lisboa mourisca.


Decerto, que eles já celebravam o grande Mártir no Rito que tinham, tanto mais que, durante a dominação sarracena, por razões óbvias, eles não podiam adoptar outro.

II – Que o Rito Romano-Visigótico existiu em Portugal, é facto indiscutível. Há documentos insofismáveis. Um deles foi descoberto, há anos, pelo sábio investigador coimbrão, D. António Garcia Ribeiro de Vasconcellos, na cidade da Rainha Santa. Este documento, que vem citado e fotografado no Livro El
Canto Mozárabe, de Cassiano Rojo e Germán Prado (Barcelona, 1929), pode servir como prova de que, em Coimbra, existiu também aquele Rito. E se nos lembrarmos de que o Convento de Santa Cruz era dos mesmos Cónegos Regrantes a quem estava confiado o de S.Vicente de Fora; se recordarmos que aqueles monges exerceram uma influência importantíssima na vida religiosa e cultural dos nossos primeiros reinados, talvez possamos concluir que o Santo Patrono do mosteiro lisboeta fosse louvado também em Coimbra com o Rito Romano-Visigótico.

III – Outra razão, não menos interessante, é a que nos oferece a feliz coincidência de, no Ofício do Santo, tanto no Patriarcado como na Diocese de Faro, se cantarem ainda hoje algumas estrofes do célebre hino de Prudêncio, adoptado também, desde o século V, no ofício do Rito Romano-Visigótico.

IV – Também ouvi dizer não sei a quem (garanto, porém, que não o sonhei nem inventei) que, antes das obras levadas a cabo por Baltasar de Castro, havia na capela vicentina da Sé Patriarcal uma roldana de campainhas cuja utilidade ninguém conhecia.
Ora no Rito Mosarábico usa-se um carrilhão em forma de roldana para tocar continuamente durante o Cânon da Missa. Não será, portanto de concluir-se que o orago da referida capela era celebrado naquele Rito?

V – Uma achega mais me forneceu a preciosa informação de D. Gabriel de Sousa, Reverendíssimo Padre-Abade de Singeverga. Disse-me há pouco, Sua Paternidade, em amena conversa sobre este assunto, que o Reverendo Pároco da Freguesia de S.Vicente da Chã, concelho de Montalegre, também não sabia o que fazer a uma roldana de campainhas que havia lá na igreja.

Não será esta roldana mais uma prova preciosa de que o culto de S.Vicente foi durante muito tempo o masarábico?

É, pelo menos, sintoma muito interessante a existência de uma roldana numa igreja perdida em Trás-os-Montes, cujo orago é o grande Diácono.


VI – As razões apontadas podem não ser concludentes, mas julgo que não ficarão dúvidas algumas perante os documentos que a devoção a S.Vicente e a solicitude por quanto lhe diz respeito levaram o Sr. Dr. Adriano de Gusmão a oferecer-me. Não posso deixar de lhe agradecer aqui publicamente o espírito de colaboração com que deles me deu notícia e a amizade com que se deu ao trabalho de mos trazer.

Bem-haja!


E aqui têm VV. Exas. esses dois preciosos documentos, que rezam assim, textualmente:


«Havia a Capella chamada a Missa de S. Vicente, que quotidianamente celebrarão os Bacharéis por alternativa no Altar, onde estava o seu corpo, com o privilégio de ser a própria do Santo em qualquer dia, ou festividade do anno sem excepção alguma. Constava esta Missa de algumas orações, que não há nas outras missas: era de um só Padre; porém cantada a canto chão pelos meninos do coro, tocando-se em todo o tempo do Canon huma roda de campainhas, que estava na claustra por detrás da Capella do Santo, e se observava indispensavelmente. No seu oitavário era a Missa dos três Padres, cantada a canto de órgão pelos mesmos meninos do coro; e tudo se fazia por uso antiquíssimo»


J.Baptista de Castro, Mappa de Portugal, III TOMO, pag. 347, 2ª edição 1762.

«Nesta SÉ se canta, todos os dias do anno huma missa em o seu Altar do Glorioso Mártir S. Vicente, officiada pedosmoços do choro a hora matinas, com diffferente Rito do Romano…»

«Memorias para a História Eclesiástica de Portugal – Que sítios , ou perguntas sobre os monumentos históricos da Se de Lisboa»


(È anterior ao terramoto)


Em face do que fica exposto, não será, pois, ousio meu afirmar que em Portugal, ou pelo menos na Capela Vicentina da Sé de Lisboa, até ao terramoto de 1755, S.Vicente era honrado na Liturgia Romano-Visigótica.

E sendo assim, creio não haver grandes dificuldades em restaurar esse culto pelo menos, na referida Capela. Seria reatar uma devoção tradicional ao nosso Padroeiro e, ao mesmo tempo, restaurar um privilégio honroso para a nossa cidade.

Outra questão, também de certo interessante, que surgiu no meu espírito, durante os estudos a que procedi para este pobre trabalho, seria determinar qual a razão por que D. Afonso Henriques confiou o Mosteiro de S. Vicente de Fora aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. É que talvez não fosse de todo alheia a tal decisão a devoção ao Santo Diácono…

Estas coisas são como as cerejas: vêm umas atrás das outras. E o que é certo é que vim a reparar nisto: - Adão de S. Victor, o inspirado poeta das sequências vicentinas, falecido em 1173, era também Cónego Regrante na Abadia de S.Victor de Paris.

Nada me custa crer que o nosso primeiro Rei, tão ligado aos franceses por laços de sangue, pelos elos da amizade com S.Bernardo e outros, e ainda pela valiosa ajuda dos Cruzados, tenha confiado o Mosteiro que ele dedicou a S. Vicente à Ordem Religiosa a que pertencia aquele poeta do Santo. É até muito provável que os Cruzados também fossem devotos do Santo e cantassem as tais sequências tanto em voga naquela época.

Se assim fosse (e nihil obstat), ficaria satisfeita uma das muitas curiosidades do espírito bisbilhoteiro dos historiadores…

Mas voltemos ao culto de S.Vicente. E agora especialmente em Lisboa.

Padrinho da cidade desde o seu Baptismo, o Santo Diácono foi celebrado com todas as honras litúrgicas, como era natural.
O seu dia natalício era, na Sé de Lisboa, precedido de uma vigília com missa apropriada, cujo texto, afora as orações que eram exclusivas, eram os da vigília de S. Lourenço, um dos Santos de maior devoção da Igreja primitiva. Está registada em missais antigos.

Propriamente no dia da festa (22 de Janeiro), em S. Vicente de Fora, onde o santo era considerado Cónego Regrante, e na Sé em que fazia parte do Cabido, a Celebração do Padroeiro era e é ainda hoje duplex de 1ª classe com oitava privilegiada, rezando-se ofício próprio e tal MISSA LAETÁBITUR.

No dia da oitava, 29 de Janeiro, realizava-se na Sé, certamente promovida pelo Cabido, grandiosa e solene procissão com as relíquias de S.Vicente.

Foi encontrar num in-fólio da nossa Catedral a notícia desta procissão, cuja tradição infelizmente se perdeu:


Reza assim o texto:


DIE XXIX JANUARI
PROCESSIO S. VINCENTII MARTYRIS
COMMEMORATIONES
DE EODEM SANCTO

ANTIPHONA

Oscae Vincentium genuit,
Caesar Augusta stola exornavit,
Valentia martyrio coronavit,
LISBONNA, sepultura decoravit.

Justus ut palma florebit.
Sicut cedrus Libani multiplicabitur.


A festa da trasladação em 16 de Setembro, embora não tivesse tanta solenidade exterior, era e é ainda celebrada como duplex maior com missa própria, isto é, composta de textos apropriados á celebração do acontecimento, textos esses que, com excepção apenas do Cântico do Intróito e do trecho do Evangelho, são todos diferentes dos da festa de Janeiro. Isto segundo o próprio de um missal que possuo, editado na tipografia Plantiniana em 1716.

Finalmente, em Lisboa, a devoção ao Santo Padroeiro foi tão grande que o seu dia foi guardado como dia SANTO.


Pena é que a devoção a S.Vicente, Padrinho da Cidade e seu tão desvelado Protector, tenha decaído tanto nos últimos tempos.

A INGRATIDÃO NÃO FICA BEM A NINGUÉM E MUITO MENOS A LISBOA QUE DESDE TENRA IDADE, FOI ANIMADA E PROTEGIDA POR TÃO GRANDE HERÓI DA FÉ CRISTÃ.






texto de Padre Jose Correia da Cunha



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